Vivemos num tempo acelerado onde tudo é consumido e ultrapassado. A informação vem de todos os lados, consumimos e vemos cada vez mais depressa e andamos esquecidos de ouvir e de escutar. Pergunto-me muitas vezes, a pensar o país, porque será que do Rio Tejo para baixo, no meio das conversas, para chamar a atenção do outro, dizemos “escuta”, enquanto que do Rio Tejo para cima, dizemos “olha”. É de facto uma boa pergunta. A verdade é que escutamos cada vez menos, seja no Norte ou no Sul. Há todo um tempo para trás, que com a revolução industrial se foi perdendo. As pessoas deixaram de trabalhar com animais, trocaram-nos por máquinas, deixaram de se encontrar ao serão. A televisão e a rádio invadiram as casas, depois veio a internet e os telemóveis fizeram o resto. A memória deixou de ser trabalhada. Qualquer lapso de memória pode ser resolvido com uma consulta ao motor de busca mais próximo. A nossa vida é mediada por aparelhos. Poucos ainda se lembram de cantigas, provérbios e adivinhas de cor, e todos os que ainda se lembram, estão em vias de extinção. É o fim de uma Era, onde se trabalhava no campo e se cantava. Agora para se cantar, tem de se ter hora marcada, para se lembrar das letras, tem de se ser profissional, ir aos concursos de vozes, pôr maquilhagem, subir a um palco, estar afinado. Antigamente afinavam uns com os outros e se as vozes e os instrumentos não “ralhassem”, estava tudo bem.
A Era da tradição oral, está a terminar, agora entramos na Era da tradição digital. O que a música portuguesa a gostar dela própria vem fazendo, desde há quase dez anos, é documentar essa transição, que é lenta e complexa. Temos percorrido o país de Norte a Sul, à procura das pessoas que ainda cantam para si próprias, que utilizam a memória e a tradição oral para manter vivas práticas e saberes ancestrais. Por isso, gravamos tudo: canções, rezas, responsos, benzeduras, ofícios, “saber fazer”, danças, músicas, estórias de vida. Gostamos de dar voz a essas pessoas e de ser os seus mensageiros, muitas vezes puxando por elas, levando-as para outros lados, colocando-as nos jornais, na televisão, na rádio e fazendo com que nas suas comunidades elas sejam ouvidos, reforçando sempre as suas práticas pela positiva, permitindo que muitas vezes se lembrem ainda de mais coisas e deixem para trás aquela atitude peculiar de “eu não sei nada”, “aquilo que eu sei não tem valor”. Tem sim. Tudo tem valor. Nós gostamos de dizer que gravamos as pessoas reais, tal como são, com o bom e o mau, damos-lhes esse espaço. Todos/as somos especiais, todos/as temos uma história para contar, todos/as somos estrelas. É muito importante essa valorização, gravamos patrimónios humanos. É isso que nos interessa.
Tiago Pereira
Diretor Artístico d’A Música Portuguesa a gostar dela própria