“Chegámos ao Sardoal com duas pretensões: a de traduzir para cena a memória, os costumes e a tradição da terra e a de fazê-lo seguindo os guias dramatúrgicos de Gil Vicente – transpostos para a contemporaneidade. Nenhuma das duas encarámos como tarefa fácil.

O Sardoal, vila-jardim, repleto de fontes e velas e flores. Gil Vicente, de língua afiada e sem convencionalismos, expondo através dos seus personagens um retrato de classe. Ora, o desafio era fazer com que os dois se encontrassem, mas em 2024, em plena celebração de abril.

Caminhámos pelas ruas do Sardoal, recolhemos histórias, observámos texturas, cores, paisagens e acima de tudo, ouvimos as suas gentes. Entrevistámos, recolhemos, gravámos. E depois? E depois foi encontrar a linha vicentina que nos permitisse contar tudo isto com teatro de hoje, com vozes de agora. As estéticas mudaram, é verdade. O teatro hoje em dia tem um papel menos presente na vida das comunidades e há muito que se afastou da roupagem da farsa para dar lugar aos discursos. Mas as histórias, essas, permanecem semelhantes. Ainda hoje nos podemos fazer valer das profissões para espelhar um grupo social, ainda hoje encontramos entre o Povo coisas por dizer, verdades a denunciar. Talvez chamemos os fidalgos, os artesãos e as alcoviteiras por outro nome, mas mantêm-se as distâncias e as proximidades.

Um auto nada mais é, senão um ato (do latim actu = ação/ato) de intenção moralizadora. Muitas vezes as suas personagens representam virtudes ou pecados. Aqui, no nosso Auto da Fonte das Três Bicas, estão as quatro virtudes clássicas representadas: a Prudência, na voz da narração/piano; a Justiça, na voz da percussão; a Temperança, na voz do violoncelo e a Fortaleza, no corpo da fonte. Pelo meio, várias profissões e tarefas, a espelhar o seu grupo social – num retrato cronológico do que a memória dos entrevistados pôde contar sobre esta terra. E de resto, todos os pecados que por aqui aparecerem (e aparecem), deixo-vos a vós o desafio de os encontrar. A nós, parece-nos que o maior de todos é esquecer, e por isso mesmo este é um auto sobre lembrar.” – Tatiana Rocha

SINOPSE do ESPETÁCULO

A Fonte é um lugar de encontro, um lugar de trocas. Esta fonte é fonte de vida, fonte de histórias. Serão todas as fontes feitas de pedra? Não haverá fontes, que brotando água, são feitas de braços e mãos que se agarram umas às outras? Se a fonte é água, a fonte é vida, também é sorriso de pessoa desconhecida.

Aqui, agora, encontramos personagens reais da vila do Sardoal. Contamos e cantamos as suas histórias seguindo as diretrizes da música tradicional da região e da sátira sociopolítica, tão caraterística na obra de Gil Vicente. A roupagem dos arranjos musicais, bem como a dramaturgia que se apresenta em cena, alimenta-se da contemporaneidade para recuperar o passado e encontrar-lhe um lugar no futuro. Seguimos o rasto da água, desta fonte que corre, segura… e segue, firme.